sábado, 19 de setembro de 2009

Reflexões de um dente podre

Aranhas em teias

Balançam de cá para lá,

Teriam na vida pendências?


V.R Gherardini, em seu primeiro Hai Kai.



Recentemente, minha última leitura de toalete (hábito revisitado após décadas de ausência), levei minha agenda de 2006, ou ao menos o volume que constituiu em uma tentativa de agenda de compromissos. Lá encontrei meu eu da época, demasiado amargo para meu gosto atual. Redescobri as anotações afetivas de uma antiga namorada e destas resgato este poema. A sutileza do poema reflete minhas considerações existenciais do último ano. Não tanto pelas tramas espalhadas ao longo da ladeira do triênio, mas pela última palavra, pendências. Sempre penso nelas quando entro em um avião. Terra dos Homens eliminou minha ansiedade de viajar de avião, mas não a mórbida conjectura do e se for a última viagem? É preciso estar leve. Cada ano vivido nos treina a eliminar o excesso de bagagem.


Meu ano novo chega em Setembro com um clima insólito. As estações também mudam nas cidades interiores e ocorrem trocas de carapaças oníricas. Ao olhos a casa da mente está limpa, mas de fininho surgem os fantasmas das relações passadas. E após o surrealismo inicial uma voz reverbera na escuridão infinita: porque agora? E na ausência de relacionamentos concretos com essas mulheres episódicas os espíritos inacabados ganham contorno: são fantasmas das virginianas passadas.


Contrariando uma inevitabilidade masculina de esquecer as datas, uma engrenagem sutil movimenta a roda d'água nas profundezas e apesar da consciência não guardar mais referências, os dias chegam e mecanismos estalam, e lançam seus espectros. Como se uma frequência de rádio morta deixasse um sinal oco na alma, que bruxuleia quando chove e relampeja fantasmagoria. No mercado, ajudando minha irmã nas compras olho para as massas de pastel prontas e zelosamente embaladas e me permito meio segundo de melancolia nostálgica na ponderação do impossível. Uma fugaz oferta de aniversário ao vácuo. Em seguida a mente prática assume de volta e instantes depois impera o nonsense da afetividade barroca. A hilaridade da noiva de Frankenstein criada na torre do ego, destinada a nos rejeitar, pois mesmo monstros possuem o bom senso de recusar participação em mitos tortos. E a boa vassoura de palha os leva embora...


Mente limpa, dente podre. No abismo minimalista da dentina um homúnculo extrai uma catedral da podridão e ergue um altar de cadáveres. No fundo da raiz perdida duendes decompostos guincham emaciados á luz do derradeiro fogo fátuo. O verdadeiro horror chega a ser absurdo. Tão bizarro quanto um cármico canal quinze anos depois. A auto imagem corporal custa a desfocar da miúda entidade sombria repousando na gengiva, em cujo murmúrio reside a promessa de toda dor... A cavidade barítono, brocas soprano e lixas contralto e vindo de detrás dos olhos, aquele tenor. E o boticão ausente, negado pelo progresso e a eugenia da estética percorre as ruas na mão das viúvas dos bucaneiros...


E a luz do consultório entra altaneira com a primavera e purga celeste a nociva fossa. E sobre as ruínas da civilização esquecida é erguida a cosmopolita cidade do escárnio, destinada a perdurar para além da ausência do hálito. Para o deleite dos existencialistas futuros.


Saúde!





P.S: Só pra constar, a autora do poema de abertura é de Capricórnio.

Um comentário:

Artemis disse...

Claro que você me assusta... Como se pudesse ser diferente!