quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Clipe

Você olha pela janela. A cidade começa a se adensar. O cheiro agradável do carro começa a feder trazendo memórias demais. Tira os pés do vidro e se ajeita como quem está indo para o trabalho. O mundo acelera em câmera lenta ao seu redor. Você toca a porta e ela abre, o carro parou sem se fazer notar. Sem despedidas, parece um táxi e não risadas, carinho e cumplicidade. Só uma estátua na penumbra ao volante. Sem olhar para trás, seu rosto em primeiro plano e um cenário desfocando ao longe atrás.

Você vaga pelas ruas, o cabelo bate no alto dos ombros e te faz lembrar de quando ele era comprido. Tempos de mestrado, poucos e bons amigos, romances platônicos, muitas promessas. Recorda a saída da universidade com seus colegas, sorrisos, olhares tímidos e cada um deles vai se afastando para um carro, um ônibus, um metrô e você fica sozinha, com a cidade passando atrás como em uma esteira de fábrica, mudando a cada rua transversal que você atravessa.

E estás no presente. O rosto melancólico comprime os lábios em um bico e as sobrancelhas pretas definidas erguem um arco “e se”. O vestido preto e azul agora é branco e você mexe na bolsa, acaricia a lebre caramelo lá dentro, tranqüila entre paredes de veludo vermelho e um piso de grama. Pega um estojo largo feito de jeans e quando ergue vê a si mesma esperando o ônibus, calça puída e tênis gastos, jaqueta um tamanho maior, celular na mão, abre, fecha, olha o ônibus e contempla a tela.

Ultrapassa a si mesma e se vê sentada em uma escadaria, amigas em volta, cortando a calça pra fazer o estojo. Você abre e tira dele uma grossa trança dos seus cabelos pretos com fitas vermelhas nas pontas. Você a coloca no pescoço enquanto anda, é uma gargantilha. Amarra as fitas e antes de dar o nó puxa as pequenas cordas que derramam o azeite de oliva que empapa a trança. O azeite escorre pelo seu colo nu e mancha o vestido. Você dá o nó. Seu vestido começa a mudar para verde escuro.

O mundo desacelera ao seu redor quando você solta as mãos e olha fixamente pra frente, o rosto melancólico substituído por uma determinação impassível. O sol aparece ao seu lado e você sorri na direção dele, lábios com um brilho verde refletem insetos voando. Entrega sua bolsa para um louva-deus gigante que lhe faz uma mesura com a cabeça. Olha pra frente de novo e caminha confiante. Começa a chover.

Você fecha os olhos, ergue o rosto, abre os braços e se joga girando em direção a avenida. Você gira sem parar na avenida molhada e os carros começam a derrapar e giram junto contigo, a água sobe entre eles formando lentas colunas ascendentes. Vista de cima, você é um ponto verde entre manchas coloridas escorrendo em linha reta pelo vidro do carro. Os reflexos da estrada brilham lá fora. Você puxa a aba do casaco com frio e se ajeita melhor no banco. Olha para o vidro e devaneia. O cheiro dentro do automóvel te conforta.

Seu rosto vai ficando pequeno enquanto o carro, a estrada e a paisagem se afastam em ritmo constante, até parecerem uma coisa só.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Manteiga Epifania














Quando olhei pela primeira vez esse pote de manteiga fiquei surpreso com o design. Manteiga em espinhas? Homenagem industrial ao úbere primevo? Um estudante de arquitetura com o prazo apertado para entrega de um trabalho teria ocas modulares em sua mesa. Todas as manteigas de pote até esse dia tinham sido iguais. Planas, lisas, ás vezes com um platô ou outro desnível para um lado, mas nunca assim, organizadas. “É da máquina”, me disse um amigo. Realmente, dá pra imaginar uma esteira e a manteiga vindo por tubos até os bicos dosadores, o suave som semelhante a um flato tímido quando o pote é preenchido. Teria eu sido enganado todos esses anos, por comerciantes que desligavam seus freezers durante a noite e assim desfaziam o singelo padrão? Teria a luz elétrica diminuído de preço, permitindo a volta daquela estética, sem ameaçar o lucro dos mercados com geladeiras ligadas? Nada disso, apenas uma mudança no padrão das máquinas dosadoras. Pelo menos para mim, a primeira em dez anos. A manteiga mais barata do mercado agora vinha com uma experiência estética gratuita. Um inesperado estímulo para racionar o produto quando a grana aperta. Agora havia como escapar da depressão ao constatar a geladeira quase vazia. Uma xícara com a última dose de café, o derradeiro pedaço de pão e uma contemplação.


Amanhece á mesa quase nada,

Ouço os sons do dia

Chega a luz da alvorada.

O café ralo,
No bule espera.

O pão dormido,
Acorda a fera,

A manteiga é destampada.

Urra a pança,
Contemplo a textura.
Espeta-me a lança
Com ternura.

Desço entre monastérios
Cúpulas de ouro sob o sol.


Caminho nas sombras de torres amarelas, uma cidade coberta de arabescos cambiantes, envolta na fumaça dourada de chá de manteiga de iaque. Um sensual aroma de úbere e óleo de açafrão envolve e aperta como diáfanas serpentes de vapor. Á sombra dos palacetes monges dourados ecoam o mesmo mantra. Odaliscas se espreguiçam no umbral de cambiantes portais. Seus sorrisos fluem ao contrário, para cima enquanto deslizam ao meu encontro, ventres generosos e curvas brilhantes derretendo ao sol...

Que ilumina já a mesa e amolece o pequeno quilate de Xanadu ali á espera. Começo a desfazê-lo com a faca...

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Noite no subsolo

Eu cheguei no bar com o Jota, naquele meu estilo elegante e lugar comum de vestir, com uma camisa gola pólo e uma calça jeans com aparência de nova. Ele estava como eu, mas seu eterno ar de sambista o tornava mais elegante, qualquer roupa caía bem com sua descontração. Naquela noite eu não estava distribuindo sarcasmo como de costume, mas entregue a uma ansiedade fria e previsível, por isso mesmo controlável.

Em uma mesa no largo corredor do subsolo estavam as amigas do meu camarada. Na verdade vizinhas de prédio. Bom, só Sônia era amiga dele mesmo, a outra era amiga desta. Quando nos viram houve aquela pausa de segundos quando somos sondados com equipamentos de inconcebível tecnologia. Depois, os cumprimentos educados. Sônia era uma moça de altura mediana de uns vinte e seis anos, cabelos castanhos sem franja escorridos até o ombro, um lado mais despenteado. Rosto comum, porém belo, com um sorriso levemente triste que fazia toda a diferença. Usava uma mini saia branca justa e um casaco curto também branco e aberto, deixando a mostra uma blusa apertada de um verde escuro cintilante. Um decote generoso, coxas grossas, belas curvas. Para os padrões do meu amigo ela era gordinha, mas em minha opinião ele sonhava acordado com algum país de virgens anoréxicas.

Gisele tinha ascendência oriental e curvas menos exuberantes, mas firmes e delicadas, que fluíam em conjunto sob o pano ao menor movimento. Usava um vestido roxo, estilo entre medieval e moderno, de mangas compridas e ombros levemente bufantes, mostrando uma parte das costas, expondo o pescoço e um par de hipnóticas saboneteiras de pantera. Seu cabelo longo também tinha mechas e reflexos roxos. Seus lábios carnudos ficavam mudando lentamente de formato, quando ela não estava fumando, como um caleidoscópio de brilho fosco. Infelizmente a maior parte das combinações que faziam com os olhos era de desdém.

Logo que nos sentamos ela ironizou com meus cabelos compridos e minha condição de estudante, fez questão de destacar que ela trabalhava, tinha um emprego em um escritório e se preocupava com coisas sérias e adultas. Eu mal tinha aberto a boca. Nem tomado um trago. Vieram as bebidas e ela forçou um interesse perguntando de que cidade eu vinha, filmes preferidos, livros e outros detalhes. Houve alguma conversa amena entre nós quatro, mas logo Sônia e Jota deram prosseguimento a algum assunto pendente entre eles. Continuei falando de mim para Gisele, consegui alguns sorrisos agradáveis, mas a situação no geral era terrível. Ela me olhava como se eu fosse um tedioso exemplar de uma raça de lesmas peludas, mais um medíocre improdutivo onerando a sociedade, com sua existência. Os mínimos movimentos de seu belo corpo agora eram os de um predador, indeciso entre sujar as garras na imundície ou livrar o mundo daquela aberração na sua frente. E ao mesmo tempo aquela calma por entre a fumaça do cigarro, aquela beleza envolvente como o som de um gongo atordoando os sentidos a cada piscadela. Ela era fantástica, mas isso ficava escondido debaixo da própria merda rancorosa com que ela tinha se coberto. Gisele tinha sido cercada no centro da cidade por uma torcida organizada e quebrada até o menor dos ossos, á luz do dia em horário de almoço. A rua ficou assistindo e ninguém fez nada, seguiu sua rotina enquanto ela permanecia no chão coberta de mijo e fezes. E eu era só mais um cara menor do que o sofrimento dela. Um esboço, um contra regra.

Uma hora nosso assunto morreu e ela ficou dando ostensivas olhadas para a amiga, com vontade de ir embora. Eu já havia reparado que Sônia fazia alguma confissão muito íntima para o Jota, tinha até chorado. Mas ele contou uma piadinha infame e conseguiu levá-la para a pista de dança. Era visível que nada ia rolar entre os dois, mas Jota mantinha a esperança. Os olhos de Sônia estavam em outros rapazes. Gisele viu que ia ter de esperar e tentou disfarçar no seu rosto, sem sucesso, aquela frustração de estar condenada a dividir seu tempo comigo. Sua educação fingida ficava cada vez mais insuportável. Perguntou-me sobre meus relacionamentos e após meu resumo soltou um suspiro irônico. Todo o sarcasmo que descarreguei no mundo estava voltando para mim naquela noite, querendo provar que deus existia e era uma mulher bela, amarga e vingativa. Não agüentava mais. Quando ela estava me ignorando ataquei:

- Porque você tem de ser tão insuportável? O que te aconteceu? Sua amiga perdeu um filho, foi traída pelo ex-marido que roubou tudo que ela tinha e ainda passou AIDS pra ela. Mas ela ainda sai pra balada e curte a vida. Ela teria muito mais razão em ser frustrada com o mundo, mas não é. Não é curioso isso?

- Você virou um livro de auto-ajuda garoto? Se quiser aplaudir vai lá. Ela vai gostar.

- Não, assim como eu ela não está aqui pra dar show, vivemos o presente.

- Fale por você. Ela vive de ilusão.

- Você é amarga.

Ela apagou o cigarro e sorriu, jogando os cabelos para o lado, saboneteiras ondulando como veludo. Inclinou-se devagar para meu lado enquanto falava.

- Não. Vou te contar a verdade, já que estamos aqui após todo esse tempo. Eu e ela somos um espelho. Sou a sombra do teu reflexo. Nós somos tudo que restou do teu lado feminino. Esse é presente. Seja bem vindo.

Sônia chegou da pista, pegando a bolsa e acenando pra amiga. Gisele se levantou e vestiu uma jaqueta jeans clara, ocultando toda a beleza de seu vestido. Jota lamentou a partida delas e ensaiou uma longa despedida. Sentado de pernas quebradas olhei para Gisele, engolindo a verdade. Não podia terminar assim.

- Meu lado feminino? Cadê a terceira de vocês?

Sua delicada mão acariciou meu ombro enquanto ela se inclinava para sussurrar no meu ouvido. Suas voz tinha suaves cliques:

- Então espertinho, essa aí é aquela que assombra as tuas punhetas. Tenta ser mais criativo tá bom? Curte a vida. Tchau.

Deu-me um beijo carinhoso e levantou-se. Pegou Sônia pelo braço e acenou pro meu amigo. Jota sorria, satisfeito e radiante. Cerveja na mão passou o copo, enquanto me cutucava com o cotovelo, repetindo e aí, e aí?

Eu estava mudo, havia sido derrotado. Senti o copo na mão, a cerveja gelada descendo, ouvi minha voz, mas dentro de mim já tinha levantado e ido embora. O bar virou um jogo de luzes coloridas dentro de uma esfera de vidro que encolhia, cercada de escuridão. Eu tinha olhado o abismo e ele me olhou de volta. E riu da minha cara.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Ele chega em casa, abre a mochila e tira as compras da feira, o melado, o queijo e se apressa me guardar a manteiga na geladeira, tomando o cuidado de ajeitar o saco plástico para ela ter um formato mais ou menos quadrado quando endurecer.

- Transtorno obsessivo compulsivo dando sinal de vida!

Ignorando a observação, ele fecha a geladeira e vai tirar uma lasca do bolo recém comprado na padaria. Busca uma faca no escorredor e começa a arrumar a louça e as panelas. Tira a frigideira laranja lá do fundo primeiro, seca ela embaixo, onde ainda tem algumas gotinhas. Fica contemplando a frigideira de ferro pesada, a beleza de seu acabamento. Coloca-a no parafuso na parede, acima do fogão, que é seu lugar cativo. Sorri.

- Rindo de bobo né? Gostei de ver, limpando a bundinha, me sinto quase um bebê.

- Eu gosto de cuidar de você.

- É, tô vendo. Mas podia demonstrar mais consideração, fazendo comigo algo menos comum que um macarrão alho e óleo!

- Nossa que isso, tudo que cozinho em você é especial pra mim.

- “Tudo que eu cozinho em você é especial pra mim!” Que meigo! Mas então FAÇA! Usa direito o que é teu! Cadê o camarão que você prometeu?

- Camarão ainda tá caro. E mês passado eu fiz um quilo.

- Que tava quase vencendo! Sorte sua não ter tido uma caganeira!

- Olha quando for hora eu faço algo bem legal em você tá bom?

- Ah sei! Só porque tá na subsistência não quer cozinhar. Se fosse pra impressionar mulher você fazia.

- Calma lá, não é pra qualquer uma.

- Ah tá, não me esqueci. Só se ela der pra você né?

- Com certeza. Melhor elogio ao gourmet é um boquete na sobremesa.

- Escroto!

- Já que nesse local está armazenado meu banco genético de futuros, vou traduzir isso como se fosse um elogio, um novo termo para criativo!

- Você nem sabe fazer piada.

- Mas sei fazer posta de atum ao shoyu com cream cheese.

- Ah tá bom! Repete bastante que você acredita! Cala a boca, nem aprendeu que não se usa garfo comigo! Esse revestimento aqui não é falso que nem sua perícia na cozinha, ele estraga! Tem de saber cuidar!

- Desculpa, me atrapalhei ontem.

- Isso, vai tratando como se fosse a topa-tudo do cabo quebrado, vai. Essa você abusa, joga num canto deixa com óleo, casca queimada e ela ainda agradece a atenção. Não considera. Não é porque faz fritura que é facinha!

- Mas meu deus, é uma questão de praticidade! Uma pras leves outra pras pesadas!

- Isso, trata o afeto com praticidade pra ver o que é bom! Valoriza cara, valoriza!

- Meu amor é prático mas é amor tá? É sincero.

- Tudo bem, tudo bem... Eu sei, vou me contentar. Nativo de Galo é foda mesmo, muito chato.

- E nativas, então, nem se fala.

- Calado. Você nem lembra quando sua mãe me deu pra ti.

- Depois eu ligo e pergunto.

- Nem precisa. Come seu bolo, toma seu chá, vai dormir, faz melhor.

- Se eu soubesse que a astrologia chinesa ia te fazer mal, nunca teria feito aquele frango ao chop suey... Mas tudo bem, até o fim do mês um coq au vin vai consertar tudo isso.

- Ah, não me enoja, pára de ser vulgar!




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Posta de atum ao shoyu.

02 postas de atum cru

250 ml de molho shoyu

Cream cheese

Alcaparras

Faça o atum na frigideira, com shoyu em vez de óleo.

Se quiser, tampe a frigideira para ir mais rápido.

Quando as postas ficarem prontas, cubra cada uma com uma camada de cream cheese.

Salpique alcaparras a gosto por cima.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Chapa-te de abacate

Uma receita interessante passada pelo Carlos, na época que teve de reformar a casa onde morou em troca dos aluguéis atrasados, e cozinhava numa clareira de mato ao lado dela, era um chapate de abacate, quase um bolinho, por conta da grossura. Chapate geralmente é só farinha de trigo ou integral, água e sal, e um fio de óleo se você quiser. Mistura-se tudo até ficar consistente e deixar de grudar na mão. Prepara-se em uma frigideira ou panela baixa, sem óleo.
O abacate já tem óleo até demais, então você só vai precisar de água para dar a consistência da massa, além do sal. Se quiser, pode acrescentar um pouco de suco de limão no abacate antes de misturar com a farinha.

Aí é só servir. Com café ou com suco cai bem.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Reforma

Bem, tava precisando de uma mudança de ares.

Pra começar um sambinha descompromissado.
Nada muito rápido, leia com uma melodia tradicional na cabeça,
entre Martinho da Vila e Paulinho da viola, sem pretensões, sem medos, sem metas.



Indiazinha universitária,
Dançando tão bela
Gingando, sorrindo.
Daquela festa ela
Estava fugindo.

Encontrei-te de novo
Na faculdade
No meio do povo
Falamos até tarde.
Um beijo tão doce,
Dissipando a tristeza.
Caminhamos até sua casa
Sentamos á beira da mesa.

Naquela sala você mudou de idéia.
Disse que era engano,
Seja meu amigo.
Minha beata virou atéia,
Atrás do pano
Sozinha, no sofá dormindo.

Sem malandragem,
Sem afeto.
No seu pé tatuagem,
Deixei em projeto.
Dia seguinte,
Cama arrumada.
Aluno ouvinte,
Tese rejeitada.

O tempo passou,
Eu me formei.
Uma pós calhou
E te encontrei.
Você me cumprimentou,
Eu rejeitei.

Á distância sem jeito
Esboçaste um abraço.
Não, nada feito,
Se já passou, eu passo.

Vejo esfriar
Tua espontaneidade
Podes culpar
Minha personalidade.



Não guardo rancor,
Daquele dia aziago.
Reconheço o valor
De um remédio amargo.

Dia seguinte,
Cama arrumada.
Aluno ouvinte,
Tese rejeitada.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

E você, como reiterado contrário, de pijama e mascando chiclete gasto, assombra minha manhã sendo um par agridoce em um romance improvável. Seu olhar de predador permanece aceso, do alto de seu cansaço de seguidas noites em bancos de ônibus, ou de uma jornada proveitosa pelo inconsciente dos homens. Teimosa, se aproxima da beirada da cama e senta como se estivesse contrariada por fazê-lo, seus lábios sustentam uma eterna promessa de sorriso não concretizada. Nosso diálogo simplesmente está ali, sem começo nem fim, apenas ritmo conduzindo uma lânguida e sinistra capoeira, evocada pelo excesso de branco algodão, lençol e moletom. Em nosso aconchego descubro o fator comum entre tempo, gravidade e uma conversa: o beijo. Dentro daquele sólido sinto seu chiclete sem gosto fazendo malabarismo, tentando passar pra minha boca.
Só quando acordo a lembrança de nunca ter dividido goma com outra boca se instala. Assim como jamais, jamais.

Lá, você retorna á penumbra, descendo devagar em um vasto tacho de óleo fervente. Suas roupas deslizaram para ás sombras, como tiras de serpentes voadoras. O cabelo curto espeta a curva do ombro quando seu rosto olha por cima, desaparecendo em silêncio no sibilo monocórdio do azeite imperturbável. Até restar só a superfície de um sussurro homogêneo, imiscível.



Uma manhã com um suspiro dúbio na mesa do café. Existem ironias e existem paradoxos. Mas melodrama nunca deixa de ser popular na tela da vida interior. Principalmente os bem feitos.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Uma análise posterior

Prosa de uma paixão

Uma linha reta cortando o espaço, naufragada de inumeráveis planos e nós agarrados a ela, com infinitas facas, fincadas nos pescoços dos dragões e me beijas, o ar lento eviscera flores selvagens do sorriso cálido, a banhar abismos vários, das faces que visto.


Sinta. Meu vôo é negro sobre os azuis, brilhando nos botões de almas ainda não abertos. Falésias raiadas rasgam-se nos ossos fundos dos gigantescos gestos, semeados na amplidão de flores vastas, dançarinas.


Meu bebê é um coração cálido aninhado no peito, imenso templo de fluido metal róseo, quente se faz vulcânica pena do penacho da ave fogo, a aquecer este ovo negro, por ela posto e nele imersa. O olho púrpuro na treva orgânica das palavras mágicas, do coral atômico de tuas células.


Eu sou longo como o instante da carícia e amplo como olhos que se tocam, nas almas cruas que se beijam, ao cair oceânicas na lágrima de alegria.




Quando releio esse meu delírio platônico, voyeurístico e auto-acariciante de meus dezenove anos de idade penso em metal melódico, emotividade, na poesia de botequim e como tudo isso ainda tem um assustador apelo e público consumidor até hoje. Um título mais apropriado seria Prosa de uma Masturbação, um panfleto adequado a um banheiro onde se realizaria enquanto arte laxativa, trazendo a tona o melhor de nosso mundo interior, o alívio de se desvencilhar daquilo que não mais nos é necessário.

Pais e mães, se seu filho adolescente está ficando muito interiorizado, reflexivo, demasiado devaneante, leve a sério, cuide. Não o deixe emostar demais. Façam uma boa e velha viagem: Colômbia, Namíbia, Coréia do Norte, ou ao menos, uma montanha russa, Simba Safári á pé, rapel em cachoeiras, canoagem, atividades felizes como essas. Isso tem que ser tratado como um canal dentário, meticulosamente.


Faça qualquer coisa, pra não ter de recorrer á quimioterapia quando for tarde demais. A febre do devaneio, quando se instala, demora décadas para ir embora. Acredite será bem melhor para seu filho não acordar de madrugada sonhando namorar alguém que o despreza.