segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Feliz Natal Guff !!




Dia 21 de dezembro de 2008, pela manhã, Guff, um pequenino Yorkshire partiu deste mundo. Foi encontrado na calçada externa da casa e enterrado pelo meu pai. Foram quatorze anos de vida. Um membro da família.



Eu tinha dezenove anos quando ele chegou em casa, agora tenho trinta e três. Foi comprado para minha irmã, a segunda tentativa dela ter um cachorro de uma espécie pequena, após uma poodle toy preta, morrer em decorrência de cinomose. Guff foi o primeiro filho dela, antes deste realmente vir ao mundo. No começo ele tinha seu cantinho, uma casinha dobrável de espuma, onde aprendeu a dormir. Tomou o quarto da minha irmã como território e o defendia ferozmente, assim como á ela. Se ela estava com ele no colo, chegar perto era arriscar doloridas mordidas do seus pequenos caninos, que machucavam muito, contrariando a aparência inofensiva.



Gostava de explorar os espaços da casa e fugir para a rua. Conviveu com três cachorros de grande porte, Dogues alemães e uma mistura de Fila com Dogue. Dessa convivência adquiriu uma exacerbada auto-estima. Era necessário, afinal as mulheres que ele almejava eram descomunais. Essa auto-estima, somada a sua valentia, lhe deu a confiança de viver entre gigantes e talvez por isso ele resolveu dar um olá na casa do vizinho da frente, onde um enorme Fila e mais outros cachorros grandes moravam. Esse Fila o mascou, e satisfeito o jogou para os colegas, que só não o trucidaram porque o dono chegou a tempo. Minha mãe e irmã o levaram chorando para o veterinário, sem esperanças. Ele foi todo costurado de volta e sobreviveu. Passou a semana de sua recuperação tendo pequenos ataques epiléticos, ou surtos semelhantes em aparência. Seu sistema nervoso abalado. Quando voltava ao normal resolveram dedetizar a casa contra ratos e ele ficou mal, quase morrendo novamente.



Por essas e outras ficou provado que a ele não servia o estereótipo de cachorro de madame. Quando foi comprado havia recomendações de que ele não podia ficar exposto a ventos fortes ou mudanças bruscas de temperatura e que uma queda de um metro seria fatal. Ele sobreviveu a muito mais. Passou por outras dedetizações, criou tártaro que o envenenou, poucos anos atrás, sobreviveu a uma transfusão de sangue. Uma vez eu arrumava a mala ás pressas para viajar e sentei na cama para amarrar os sapatos e o estrado caiu em cima dele, quase o esmaguei. Guff não era frágil como parecia. Tenho a impressão que muitas vezes, sutil e discretamente ele segurou a barra da família, como todo cão faz desde os tempos imemoriais do contrato entre espécies, atuando na diáfana fronteira do desconhecido. Na última ocasião em que, segundo minha mãe era para ele ter morrido, uma ano ou seis meses atrás, acendi uma vela por sua recuperação. Era um período de muito stress, tanto para mim como para minha família e tive a impressão que ele estava sendo exigido muito além de suas capacidades. Com a queima daquela vela antigos elos da adolescência também foram embora. Por uma boa causa. Era o mínimo que eu podia fazer por um amigo.



Penso em tudo que vivemos juntos. Em seu companheirismo, várias vezes ficava no meu colo enquanto em madrugava em frente ao computador. Sempre raspava a porta do quarto pra dormir perto da gente, como havia acostumado com minha irmã. Fico pensando nesse período que ele participou da minha vida e da minha família. Fico triste por não ter estado lá com ele nesse momento derradeiro, mas morrer insiste em ser uma experiência solitária. Lembro que cogitei trazê-lo para morar aqui, mas seria cruel retirá-lo do seu lar de tantos anos. Além do mais ali ele está bem acompanhado. Muitos ossos caninos repousam no jardim. Imagino que sinalizem um caminho tranquilo para o acordar.


Meu presente de Natal para você Guff são votos de uma boa viagem e uma boa estada em seu novo lar. Tenha uma boa passagem e mais que um Ano Novo, uma nova existência. Muito obrigado por ter compartilhado a sua conosco.



Acorde, o Natal chegou.

Feliz Natal!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Abajo la Calle




A orquestra vira a esquina comigo, a cidade é um cinza de azuis violáceos refletidos no calçamento e o cais do porto ao final da rua ofega, entre uma baforada e outra. Cada círculo de fumaça é mais um partindo, embora o corpo fique para trás, olhando fixo o copo vazio, sonhando aguardente e calor barato em seda velha. Emborcando o chilreio de saltos e o suave estalo só deixado por lábios carregado de batom. A saca de estopa vai aos ombros, arranhões preliminares da amante, seu peso firma os pés e cada passo é um ensaio de dança, seu volume testado pelos dedos é a resistência da parceira e as pedras no piso são as linhas da pele de seus ombros. O calor do meio dia é o do corpo dela e o vapor subindo das pedras é seu perfume barato. E ele segue ao armazém com quem sobrevoa savanas desconhecidas em um balão. Os grãos o odor de um incêndio distante, irritam os olhos com a bruma de um ocaso, no horizonte um sol castanho emoldurado pela pausa quando o solo erodido freme, á espera do próximo movimento. Cílios da noite chegando estrelada no suor da fronte, gotas no dia a pino gemem evaporando nas pedras. E a noite se instala em volta das luzes amareladas, ao redor das ruas emaranhadas, na superfície dos sapatos de couro e de verniz, por fora dos ternos de feltro e dentro das rendas francesas, contorna os maços de cigarro, enrosca os de dinheiro, sopra através dos violões e sonha preguiçosa dentro dos acordeões. E em suas mesas, no salão, ao bilhar, no balcão, á beira da porta, nas calçadas entre corredores e becos, nos quartos abafados, estão eles, tantos olhos de um deus morto, roubados só para te conquistar.



Suas órbitas vazias ainda estarão lá, quando olhares o cais do longe do último barco, como uma brasa apagando o horizonte. Órbitas vazias, pés descalços, piso frio, a aurora entrará lenta entre olhos cegos e só assim finalmente poderei lhe ouvir. E só no vazio serás melodia...