terça-feira, 24 de novembro de 2009

O quarto

O quarto não saída de mim. Não ficava trancado nele. Ele estava lá no fundo. Fechado, esperando como um brinquedo no baú ou um livro na estante. Aonde eu estivesse ele também estava, não como uma sombra, mas como o coração, pulmões ou a cabeça, essa jamais esquecida, mesmo quando perdida na interseção das esferas. No trabalho, em uma conversa interessante ou não, na pista de dança, a qualquer hora, a mão pousava na maçaneta invisível e ele estava lá, arrumado, com todas as minhas coisas no lugar, organizado ou não. Livros, coleções de quadrinhos, bugigangas, relíquias acumuladas desde a infância. Um cubo branco girando na escuridão. O gelo metafísico de um drinque inexistente. Dentro de seus ângulos de arame, paredes estreladas, embora eu as preferisse brancas e vazias. Mas a amplidão alva durava pouco, rapidamente as constelações voltavam e cada ponto brilhante podia virar uma tela da memória, reprisando o ocorrido debaixo de seu auspício. E canais do impossível, programações do improvável, novelas do irreparável. Bastidores do inacabado. Retrospectivas dos momentos felizes, espetáculo das ideias. Todos passavam e caíam no chão, coloridas peças de montar, para erguer as paredes caleidoscópicas do escapismo.

Um dia só uma brasa apagada no centro do aposento. O quarto era um ruína, poeira e porcelana enterrada, restos de catapultas, canhões enferrujados. Era 2003 e todos meus amigos estavam mortos. Um jardim começava a brotar de suas carcaças. Flores eclipsaram os fantasmas. Enterrado o cubículo e o passado, restam anagramas. E a popularidade cruel do museu de cera.

Celular consertado

Você desliga o telefone, sem tempo para me encontrar.
Eu compreendo e fico a consertar teu celular.
Assombrado lembro, quão ligado a máquina o relacionamento está.
Você não está aberta, teu aparelho minha voz não escuta.
Não há namoro, decreta. A ligação não comuta.
Outro amor refletiu na máquina de lavar.
Aquele partiu a perna quando ela começou a estragar.
A gente não se falava, a máquina não enxaguava.
Ninguém mais se aguentava.

Limpando do celular o contato elétrico, me vi tão tétrico.
Bom técnico conserta o aparelho quebrado.
Mas não coração magoado.

Cadê aquela ponta de fio desencapado...

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Estampido Branco

Estampido branco,
Beira da faca
Cão sarnento.
Luz surda,
Cegos olhos,
Fogo lento.
Carne cálida,
Canta árida,
Portento.
Pele, pedra chão,
Joelhos tento.

Cidade nula
Vapor desfeito.
Gavião morto,
Pio sedento.
Língua pula
Picota peito.

Olhos ave,
Rosto refeito.
Céu abre,
Olhos deito.
Amarelos,
Magnético,
Alento.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Unibang!

Em uma sala branca e sem janelas, cinco jovens executivos esperam. Duas mulheres e três homens. Cada terno e tailleur, uma cor diferente com a suavidade sóbria do mundo corporativo. Como um elenco para uma versão seriada e pós moderna de Dick Tracy esperando para ser avaliado. Em um terno de risca de giz entra um  careca de 53 anos, com o final de um charuto aceso na mão. Ele solta um - "Senhores.." com uma voz de barítono, enquanto dá um piparote para trás no charuto acesso. Os braços musculosos de seguranças armários são vistos de relance quando fecham a porta da sala para ele. Comecemos a reunião da equipe de marketing de guerrilha da UNIBAN.

- Boa noite a todos.

- Boa noite- responde o jovem executivo de terno verde pálido. - Desculpe perguntar, mas cadê o reitor? Ele não...

- Ele está passando por uma indisposição estomacal temporária e me designou como substituto.

- E o senhor seria? Arriscou a jovem de tailleur azul cortina.

- Eu sou o Auditor. Estou aqui para avaliar e dar um parecer. Por favor, prossigam.

- Bom, primeiramente - Começa a jovem de vermelho - vamos aos fatos: a campanha da nossa agência foi um sucesso! Conseguimos audiência em todos os meios de comunicação nacionais! E tivemos ainda penetração no. - pigarra a colega de azul- Hã desculpe, infiltração no noticiário internacional muito além do esperado para uma ação local!

- Sim, e estes gráficos indicam uma ótima aderência á política da instituição na China!- emenda empolgado um rapaz loiro em um amarelo bandeira fosco. - Um mercado emergente!

- Sem contar uma tremenda receptividade no meio oeste dos E.U. A! - Destaca o rapaz de laranja cáqui.

- E no oriente médio! Observa lá do canto da tela de slides a moça de azul.

- Que bom. Já temos para onde transferir nossas operações no futuro próximo.

Silêncio de respirações suspensas.

- Por favor, continuem. - Diz o careca enquanto puxa do bolso do terno uma até então não percebida caixa de charutos. A apresentadora segue:

- Bom, as estatísticas não mentem: Após a nossa intervenção virar viral, a UNIBAN saltou de um quase anonimato para o top-of-mind em instituições de ensino particulares.

- A resposta da UNIBAN ao caso foi aprovada nos setores mais tradicionais da sociedade e aumentou a reputação da instituição nos setores que prezam a moral e os valores tradicionais da família, consolidando o público da empresa. - Completa o rapaz de laranja.

- E quanto ao prejuízo que a ação causou?- Pergunta o auditor enquanto tranqüilamente abre a caixa e escolhe o próximo charuto.

- Bom, estimamos que o prejuízo será compensado pela arrecadação nos mercados emergentes de feição conservadora em que vamos entrar.

 - Mas e aqui no Brasil, mais especificamente em São Bernardo?

- Ora passada a polêmica inicial a situação tende a se normalizar e voltaremos á normalidade. Veja esse grá...

BANG!

Da lateral da têmpora do rapaz brota sangue e ele cai quase atingindo o cavalete com as lâminas da apresentação.

Fumaça subia á frente do rosto impassível do auditor e não era tabaco. O revólver prateado parecia dar continuidade ao brilho da careca do sujeito. Mas ele não ria.

- Meu deu! O que você está fazendo!! Gritou a moça de tailleur azul.

- Esta é uma instituição fascista e vocês sabiam disso desde o início deste projeto. Logo não vamos começar a chorar. É assim que resolvemos as coisas. O auditor recuou o revólver e apoiou o cotovelo na mesa. Baixou a tampa da caixa na sua frente com um sonoro clique que calou quase todos os gemidos. Vamos aos argumentos e quem sabe não preciso gastar toda a munição. Quem organizou a ala feminina dos agressores?

A moça de vermelho tremia:

- Fu- fu- fui eu.

- Faltaram mais mulheres. Para deixar a coisa mais equilibrada. O auditor deixa a arma tombar suavemente sobre seu pulso em movimentos repetidos. A moça balança as mãos sem saber aonde as colocar.

- Olha, a gente fez um cálculo da proporção feminina necessária ao evento, pra tudo dar certo. Deixa eu mostrar o gráfico...

BANG!

O tiro pega a moça no centro das costas e ela tomba sobre o cavalete derrubando tudo. Seus colegas se contraem e guincham de desespero.

- Chega de gráficos.

 - O que é isso! Onde vamos parar! Vocês acham que podem sumir assim com a gente? Que ninguém vai notar? Grita o loiro de amarelo.

- Vocês terão três opções: Cuba de ácido, material para canapés do curso de gastronomia ou ração para os trolls da turma de anti-socialização na internet. Qualquer uma delas não deixa rastros. E assim estará encerrada a primeira e única turma de marketing avançado desta instituição. Agora, antes eu queria saber quem escolheu o vestido usado por ela?

- Fui eu. - ergue a mão a moça de azul, tremendo.

- Você por acaso esqueceu as cores da universidade? O logo é vermelho. Não rosa.

- Eu jurava que era vermelho, e-eu tenho dificuldade em enxergar certos tons. E-

BANG!

- Tinha.

O rapaz loiro se recompõe:

- Escute, que tal-

BANG!

- Não agüento mais essa cor tentando combinar com o cabelo.

O auditor olha para o jovem de verde. Cruza os braços, cotovelos na mesa e a arma ainda na mão. Silêncio. Um minuto passa. O jovem executivo tenta não olhar para os colegas tombados ao seu redor, os dois últimos com os furos no meio da testa ainda fumegando. Fixa o olhar no careca.

- E você rapaz, qual sua proposta?

- Deveríamos oferecer o curso de Turismo de graça pra ela e após o provável sucesso da revista e do possível programa de TV, promover uma nova campanha, destacando o nome dela e a frase: Formada na UNIBAN!

O último executivo da turma de marketing avançado seguiu olhando nos olhos do Auditor, corpo tenso a espera do próximo tiro. O careca descruzou os braços e abriu a caixa para guardar a arma, pela primeira vez deixando arcos se formarem na sua testa enquanto erguia as sobrancelhas:

- É, considerando as idéias anteriores, essa até que não é um completo tiro no pé. Vale poupar uma bala. Teremos outro destino para você.

- Eu, vou poder ir embora?

- Não. Você vai para a sala dos trolls no subsolo B. Se você sobreviver ao fim do semestre, quem sabe até ganha uma promoção.

- Mas, mas eles estão sempre com fome, eles vão me devorar!

- Calma, eles podem ser brutos, mas mais do que qualquer outro aluno daqui, eles absorveram muito bem a filosofia do Tao de Paulo, a qual diz que não importa o quanto você humilhe, violente, degrade e invada a dignidade de outra pessoa, o importante é nunca matá-la.

- Eu acho que a frase não é bem essa!

- Você me entendeu.

O Auditor estalou os dedos e as portas foram abertas. O jovem executivo foi arrastado aos gritos, dizendo que preferia a morte. Os seguranças parrudos taparam sua boca até a entrada do úmido corredor que levava á sala dos trolls. A porta se abre o jovem executivo é rapidamente jogado para dentro, atravessando o quase sólido odor de sebo envelhecido e pizza azeda. A porta é fechada com um estrondo e o som da chave girando nela é o último sinal do mundo exterior. A sala de teto alto está mergulhada na escuridão, salvo a luz dos monitores. O barulho de risadas débeis, mastigação e coceira aos poucos vão parando, na medida em que as criaturas notam o novo colega. Eles vêm se aproximando lentamente, murmúrios incompreensíveis vão virando grunhidos altos, chiados finos vão compondo com risadas guturais. Logo ele está cercado, e a expectativa funesta mareja seus olhos, quando ele escuta  a palavra de duas sílabas brotando aqui e acolá e logo virando um coro. Grave-aguda, grave-aguda, grave-aguda e ninguém o acuda...

Em meios aos gritos de fúria ninguém o ouviria gritar.