quarta-feira, 14 de março de 2012

Prova não prova

Era mais um Domingo de provas em Rondônia. Noite de véspera insone, o som altíssimo das festas da vizinhança tira o sentido do sono. De manhã mal ainda era difícil imprimir o nunca requisitado comprovante de inscrição. Um pedaço de pepel só pra ficar dobrando e desdobrando, para recordar e relaxar enquanto espera. A faculdade da prova tem uma arquitetura bonita, você vai gostar, disse a esposa. Lembro disso quando abrem os portões e caminho, olhando os prédios sem placa, procurando o que está em maiúsculas na folha, Neo Clássico. E ele é realmente, ao menos a parte superior da parte caixa cor de concreto, que me faz supor um edifício em construção. É mezzo feio, mas tem sua pompa, entre o vaticano e o mausoléu de Napoleão Bonaparte, todos vão lembrar da Glória de Roma e o poderio da sapiência. Ao lado ao menos, há um prédio branco baixo e comprido, vejo quatro arcos da sua lateral, o último o primeiro de um longo corredor avarandado, com uma sequência de grandes lanternas quadradas, de vidro e metal preto, a se distanciar. Talvez Árabe. O interior do prédio neo clássico é um grande hall, uma escadaria ascendente em curva, elegante, uma grande área central vazia, elevadores com seus fossos expostos, como em shoppings e uma grande cúpula de vidro e metal, deixando a luz entrar. A cúpula é uma da melhores coisas ali, passo grande parte do meu tempo antes de entrar contemplando-a. E tendo os mais diversos pensamentos. É incrível como a mente vai criando as mais diversas conjecturas em momentos inesperados.

O interior do prédio lembra uma versão com acabamento de alto padrão do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, onde estudei lá em Santa Catarina. Totalmente anti mendigo claro, sem banco algum. Mas a mesma concepção, aquele miolo amplo onde o pensamento do estudante expande antes de contrair na sala de aula. A gente entra na faculdade com essa ideia mesmo, de que ali é um lugar onde vamos expandir nossos horizontes. Com o tempo vamos percebendo onde as coisas realmente acontecem. Desde seu campus, a faculdade é ampla, mas a vida acadêmica é passar da amplitude para espaços cada vez menores, onde você se torna cada vez mais importante. Do Salão para a sala de aula para a salinha do núcleo de estudo para o escritório do orientador para uma mesinha e uma cadeira. O menor lugar é dentro do computador, aonde vai seu currículo, dentro das ainda menores caixinhas dos formulários. Você não existe fora daquela caixa. Os editais comprovam. A compartimentalização, não ensina humildade, é apenas  burocracia. Já viu um compactador de lixo? Não transforma lixo em Hai Kai, embora o poeta faça. A universidade também é assim, compacta o ser humano, até ele em um diploma. O subproduto é livro geralmente pouco lido, com sorte um pouco mais, quase sempre esquecido. Você é do tamanho do teu Lattes. Os caerriculos lattem e a caravana do emprego passa. Caerrículos são sempre mirrados. É quântico como uma palavra que remete a universo na pratica é agorafóbica.

Quando estou à beira de mais uma prova de concurso fico contemplando essa ilusão. Olho a cúpula de vidro lá no alto do prédio e toda a sua luz. Vai chover e tenho certeza que apesar da beleza há uma falha. A chuva cai forte, um som agradável, parece um bom presságio pessoal. O peso da chuva é intenso. Após alguns minutos olho o chão perto do feio jardim de inverno atrás dos elevadores, com quatro plantas parecendo palmeiras em um chão de pedrinhas sujo, estilo canteiro das bitucas. Uma goteira cai lá do alto da cúpula. Vejo outra. Fico pensando se ela está afixada no neo clássico com parafusos e na possível existência de uma cavidade circular ao redor da base, funda o suficiente para encobrir a fronteira entre abóboda e teto e deixa a água entrar. Penso na BR 364 cortada pela cratera e em um país onde chove em abundância desde sempre, mas a água é rala nos cálculos de engenharia. Não sabemos escoá-la, então reformamos o código florestal para matar os córregos. Criar mais mosquitos para matar os pobres que não morreram bebendo água suja.

E vou para a prova, já fraudada de saída mas ninguém fala nisso. Uma prova exaustiva com oitenta questões e duas redações. Nostálgica pra quem fez cursinho. Já começa com errata, datilográfica. Perguntas explicitam que você não decorou coisa metafísicas como anáfora, catáfora e dêitico. Prefiro lembrar de sardônico, meu sorriso enquanto recordo satisfeito a língua portuguesa morrendo nos lépidos dedos dos jovens miguxos ( alguns temem ). Recordo de anáfora, penso em ânfora. Lembro sobre ensinar o que é vasilhame,  sem definir o vazio nele contido. As funções pronomiais parecem o som de cacos quebrando.

Outras coisas que nunca farão parte do cotidiano trabalhista de um funcionário público, salvo em conversas no intervalo do café, como a lembrança de John Gleen orbitando a terra ou o apreço pela Semana de Arte Moderna. Suspeito corretamente que não considerar o general desertor sírio como líder de um conselho revolucionário vai me valer um erro e mais tarde descubro acertada a  suposição. A prova recorta as manchetes e tem posição política definida: não questionar. Ao menos isso é mais pé no chão do que saber qual o primeiro estadunidense a orbitar a Terra. Não questionar é uma constante de funcionário. Ou será do brasileiro?

As horas passaram, fui ao banheiro ao final das objetivas e o detector de metais não apitou para minhas moedas e chave no bolso, e nem pra fivela do cinto. Foi a prova mais tranquila que fiz até agora. A sombra da fraude ironicamente deu um ar nonsense a tudo aquilo. Mas é essencialmente uma piada. Mais tarde veio a notícia que as provas do meu cargo foram anuladas. Depois mais irregularidades afloraram. Sorria meu bem, você está sendo lesado.

De 2010 até este ano foi o período em que mais fiz concursos na vida. Um padrão emergiu desse período. Concursos com inscrição cara e poucas vagas, geralmente fraudados ( A prova está até na sabedoria popular, será que eles estão errados? ) e concursos com muitas vagas, de inscrição mais baratas, ocasionalmente manipulados. O de Domingo último um exemplo mais evidente do primeiro tipo. O segundo, foi o concurso para a prefeitura de Porto velho que precisava urgentemente contratar mais professores e médicos. Para não ficar com somente 60 professores aprovados, nove questões específicas foram anuladas.  Agora podem chamar mais de quinhentos professores. Manipulação favorável aos candidatos. A dos concursos fraudados só é favorável a quem já está previamente escolhido. Cartas marcadas, a piada recorrente. Cartas na manga, a piada dos gestores reféns de um modelo de contratação que é como a maioria das coisas no país, por fora, sério, por dentro pantomima. Sem desmerecer essa última.

A chuva cai, a BR 364 abre cada vez mais no meio, o trânsito desviado para um rua precária, como quase todas as vias não principais de Porto Velho, onde fora das avenidas predomina o mosaico entre asfalto e lama. Engenheiros formados com excelência, cálculos medíocres nas edificações, nos projetos da cidade, na receita do asfalto. a água enche os buracos na rua, olhos do chão refletindo a luz dos postes.

Espelhos onde a educação vê seu verdadeiro valor na sociedade.

Como ensinar a importância do invisível que não é deus?

Uma resposta deve ser formar burocratas.

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