terça-feira, 26 de agosto de 2008

Sexta Feira Fria

Mais um fim de semana. Desta vez, o ônibus adia por uns quarenta minutos minha saída para a balada. Apesar da via expressa sul, ficamos parados uma meia hora por conta do Jogo do Avaí, um lembrança dos velhos tempos sem aterro, com a Costeira trancada por mais de uma hora. Sigo para uma tradicional área na vida noturna da ilha, para um dos mais típicos bares dançantes do lugar. Local a muito caracterizado como ponto de azaração, onde transcorrem as dinâmicas da vida de solteiro de tantos moradores de Florianópolis. Destaco: moradores, afinal ainda é inverno e há poucos turistas. Contrariando minha expectativa a entrada é barata, primeiro sinal do quanto eu mistificava o local. Não está muito cheio, ótimo pra dançar com desenvoltura e observar os freqüentadores. Logo á porta, um velho conhecido me pede cinco pilas pra completar uma cerveja (600ml= R$ 6,00. Não é a toa que não bebi nada a não ser uns goles oferecidos). No ambiente fechado eu poderia estar em qualquer lugar, mas dada a situação e os velhos relacionamentos sempre reaparecendo diante de você, á física da ervilha de Floripa manifesta-se. No canto do palco minha amigas, uma delas trouxe a colega de trabalho. Em uma dessas inesperadas ironias, o rosto dela e o biotipo me lembram uma antiga paquera Paulista. Acho encantador a timidez, o biquinho enquanto dança, a preocupação com o leve excesso de peso e o senso gregário, aquele impulso de estar sempre em grupo. Estou enferrujado, mas as inusitadas coreografias da amiga que me recorda Carol Dunlop, despreocupadamente desarticuladas vão aos poucos, por imitação,desatando meus nós.

Como é agradável poder dançar despreocupado em uma sexta despretensiosa, botar em dia os ossos e ver-se ainda capaz de seguir um ritmo. O som poderia ser melhor, menos alto, menos gritado, mas a percussão salva a noite. Mas o som é só cenário, o conteúdo humano é o que interessa. Por mais tranqüilo que esteja não deixo de reparar nas pessoas. A simpática moça da portaria, as duas meninas ao lado do nosso grupo, um trio de duas mulheres de preto e um homem de camisa branca. Uma delas de cabelos castanhos mais claros é a namorada dele. A outra é uma linda morena, uma saia blusa e meias pretas. A blusa é cavada atrás e deixa á vista o belo contraste das alças pretas da lingerie com as costas. Na penumbra demoro a notar nela a presença de uma charmosa barriguinha. Cabelo preto liso, franja reta, perfil levemente aquilino, a ossatura nasal destaca-se á distância como um ornamento de cobre velho. Penso por um momento no fato dela estar sobrando, por acompanhar um casal, mas há um silencioso incômodo em sua figura, um sutil hieróglifo moreno dizendo: hoje não.

Mas um rapaz, entre uns vinte oito trinta anos, cabelos pretos curtos e enrolados, óculos redondo, discretas entradas, chega junto dela e a tira pra dançar. Vejo á distância, por cima de ombros, como a interação começa sem jeito, a partir do zero, com dois completos desconhecidos. Ele infelizmente pega uma música para dançar á dois curta, seguida por outra mais rápida, mas segue colado á ela mesmo fora de ocasião. Já fui protagonista de cenas semelhantes em outros momentos. Conversas, mais uma ou outra dança ali e uma tentativa de beijo precipitada. Apesar disso, ambos ficam junto por mais um tempo, até que ele parte pra outra. Após mais ou menos uma hora e vinte minutos desde que reparei nela, a bela morena e o casal de amigos vai embora. Ela percebe que nada mais de interessante vai acontecer por ali, bota um grande casaco cinza, que deixa só as botas de fora e parte com o casal de amigos.

O rapaz de óculos acabaria por ficar gravado na minha lembrança, pois naquela noite ele deu em cima exatamente das mulheres nas quais eu reparei. Eu olhava uma moça e ao olhar de novo lá estava ele. Foi inevitável contar pelo menos umas três tentativas da parte dele. Todas frustradas. Quando o bar esvaziava ao final do show, ele ainda tentou uma aproximação com uma moça de calça jeans e cinto vermelho de crochê, cujos quadris pediam adornos brilhantes e convidavam á noites árabes. Ela também não foi convencida, naquela noite a lábia do rapaz não foi suficiente. O DJ selecionou uma última música, dizendo que para quem não tinha ainda beijado na boca chegara a última chance. Mas o salão já estava praticamente vazio, era fim de noite. Despedi-me das amigas, elas possivelmente engatilhavam alguma coisa ou ao menos uma carona com dois caras e segui para casa a pé.

Ao virar na rua onde tradicionalmente fica quem pede carona pro sul da ilha, eis que reconheço o rapaz de óculos, polegar ao largo. Ele articula aquele monossilábico e formal cumprimento entre dois desconhecidos, cujo única experiência em comum é ter estado no mesmo lugar, quando passo. Sinto vontade de cumprimentá-lo, elogiar o seu bom gosto para mulheres, mas sei o quanto seria impróprio. Ele não precisa de um cínico presunçoso em seu fim de noite. Ele também não está com uma cara muito bem humorada, como seria de esperar. Mas não deveria, pois ao menos ele tentou.

Eis a Fé. Como poderá o peregrino saciar sua sede em um mundo de igrejas vazias?

Sigo em paz para casa e durmo o que me resta da noite com gosto. No dia seguinte penso em como é bom estar livre da ansiedade da busca desesperada por um par. Guardada a advertência de Baden Powell, resta a estrada. E o mundo onde as catedrais acordam de vitrais baços, naves sem fiéis, altar sem velas.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Samba do Mês

Quando você acha que tá tudo ruim e não pode piorar, um amigo espírito de porco se inspira na sua vida pra fazer samba:



O seu dedo, você quase decepou.

O cabo do acelerador se soltou.

Sua internet se apagou.

Seu coração, uou, uou.



E Agosto só começou. (breque)



Mas não perca a esperança,

Existir é uma dança,

Chegou à hora de bailar.



Não faça essa carranca,

Se a vida não arranca,

É a hora de trocar.



Troque o câmbio da sua conjuntura,

A caixa de marchas não atura,

As ladeiras do Não Há.



Mude o cabo limpe o freio,

Tem um caminho do meio,

Onde quer que você vá.



Deixe entrar a alegria,

Nem que seja a fantasia,

De o sambista esganar.



Diminua a filosofia,

Pois senão a bateria,

Certamente vai vazar.



Nossa carga já é demais,

Estamos sempre aquém.

No mandando postais,

De um mundo sempre além.



Se a conexão acabou,

O fabricante se mandou,

O investimento não se pagou,

E outro mês nem começou.



Dê-me um abraço casto,

Contemplemos o abismo, pois ele é tão vasto...




Lálalalá lairáralalalairá!

Lálalalá lairáralalalairá!

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Lei Seca e transporte coletivo

Na última sexta-feira sai para a noitada de ônibus. O bar de samba, última moda na noite de Florianópolis, já que o forró perdeu o pódio faz tempo, é longe de onde moro, mais de trinta quilômetros. Enquanto duas amigas esperavam no terminal do Rio Tavares, eu ficava em casa procrastinando a possível saída. Por fim me decidi e peguei o ônibus que saía do centro ás 23h05min, chegando ao meu bairro ás 23h33minmin. Procurei não pensar, como tantas vezes outrora, nos hipotéticos obstáculos que poderiam aparecer, frustrando a jornada. Cheguei ao centro ás dez para meia-noite, peguei um Agronômica, fui ao terminal da Trindade, chegando ás 00h17min e lá por fim, peguei o último ônibus para o bairro visado, ás 00h:25min. Tudo correu tão bem, dando a impressão de que o sistema de transporte coletivo estendia sucessivamente tapetes de boas vindas, a cada conexão que eu pegava.

Ao final da noite, apesar das tentativas de pegar carona, o ônibus novamente, no caso a linha Madrugadão Norte da Ilha, nos levou de volta para o terminal do centro da cidade, onde tomamos o Rio Tavares Paradoura e depois, no meu caso, Lagoa Rio Tavares ás 05h50 da manhã (chegou um minuto atrasado no Terminal Rio Tavares, nada demais).

Durante á noite, o assunto Lei Seca surgiu aqui e ali, em um comentário, em uma observação, abordado direta ou indiretamente. As meninas comentaram, influenciadas provavelmente pelo frio de nove graus Celsius, que a arquitetura dos terminais de ônibus de Florianópolis intensifica, no quanto seria bom ter um amigo com carro para poder voltar para casa tranquilamente. Eu concordei com elas em silêncio, achando graça de imaginar a possibilidade de uma indireta. Mesmo que fosse, pouco importava, pois éramos companheiros na mesma barca. Porém fiquei pensando nas grandes estruturas subjetivas da sociedade, abalroadas inadvertidamente pela Lei Seca, como o machismo ou o status social.

Chegar de carro na balada ainda causa, mas voltar nele não mais. Do homem de classe média é retirado seu veículo, símbolo por excelência de seu sucesso financeiro, social e por conseqüência galardão de sua masculinidade, e ele é obrigado a depender da perícia alheia ao volante. Ó revolta! Se ao menos ele possuísse dinheiro para um chofer ou para o táxi estaria tudo resolvido e a crista ainda levantada. Mas não. Até nisso a lei é cruel: relembra ao homem da existência de seus patrões. Daqueles que bebem de rios de dinheiro, inclusive daquele advindo dos impostos que ele paga. Pior, ao ver de súbito a blitz, o homem de classe média flagra em si um medo da polícia semelhante ao de um ladrão, lhe sobe á garganta a náusea de ser nivelado á periferia, local de onde, no seu imaginário, vêem os bandidos. E logo está ele ao bafômetro, os números sobem e ele em instantes de pesadelo vê-se igualado á grotesca figura do malfeitor, antecipa entre lágrimas o abraço acre e emocionado dos colegas de cela, percebe o quão curta é a distância entre o cidadão de bem e o fora da lei. O quanto esse tempo todo ele esteve próximo á sanção do braço forte do estado, enquanto uns poucos, por ele eleitos flutuam imunes ao suor do ganha-pão cotidiano e á miséria. Eis o feio da nova lei: ela iguala. E ninguém quer ser igual. Na prática, apesar da carta de direitos humanos, não existe o meu semelhante, existem os outros, que erram, cometem os crimes e não prosperam. Eu nunca serei um deles e qualquer lei que mesmo na contravenção transforme o outro em meu semelhante é uma aberração.


Não vou aqui questionar a rigidez dos limites de álcool no sangue previstos pela nova lei, álcool e direção não combinam, e pronto. A lei parte de um princípio lógico e razoável. Para algumas pessoas é possível beber dois chopes ou mais e continuar plenamente capaz de dirigir, mas e daí? Na mesma faixa onde transitam com segurança os acostumados a beber e dirigir há lugar para os imprudentes. Vale o risco? No meu entender a solução é simples e cristalina: deixe o carro em casa e vá de ônibus para a balada. Para essa idéia ser viável, mais linhas de transporte coletivo devem ser providenciadas, nos horários da madrugada e principalmente nos fins de semana, como já ocorreu em São Paulo. Tal iniciativa deveria vira um padrão nas outras cidades brasileiras, quebrando a lógica da necessidade de ter carro para sair á noite. Permitindo a livre circulação do lazer.

Por livre circulação do lazer entendo a liberdade do cidadão de ir e vir durante seu período de recreação e entretenimento. Para quem depende exclusivamente de transporte coletivo, tal falta de mobilidade é contornada com um programa que elege um só local para a balada e não está aberta a deslocamento durante a madrugada, devido á falta de meios de locomoção, como o episódio vivido por mim no último fim de semana. Naquela noite eu estive satisfeito com o sistema de transporte público, mas somente porque soube criar uma estratégia de sobrevivência ás condições que este me impõe. É só observar a tabela de horários do fim de semana para ver que o sistema de transporte público trabalha contra você. O número de horários diminui, o desconto do passe estudantil deixa de valer e a noite os coletivos viram uma rara visão. Tanto que ao contar para amigos que consegui curtir a sexta de ônibus recebi olhares admirados. Florianópolis pareceu lhes pareceu, por um momento, funcionar como uma metrópole cosmopolita, a utopia do cidadão urbano devidamente respeitado pela cidade onde mora tornada realidade. Ou simplesmente a súbita iluminação de constatar a existência de uma brecha para a vida boêmia nos horários de ônibus, até então ignorada.

Aqui em Florianópolis os contratos das empresas de ônibus venceram e as eleições se aproximam. Em frente ao terminal do centro, um movimento tenta conseguir assinaturas do povo para pedir uma nova licitação dos transportes. Motivos não faltam e a hora é propícia. Fico pensando como seria bom que as companhias de ônibus urbanos fossem como os candidatos, tivessem de convencer a população do bom serviço vão fazer se contratadas, ou que fazem e vão continuar fazendo se reeleitas. Melhor seria poder identificar os candidatos que possuem companhias de ônibus. Lançar luz no limbo onde habitam políticos e empresas de transporte coletivo. Aquele evento tão deixado ao deus dará pelo poder público, ás obscuras licitações. Porque não inovar e expandir os critérios de licitação? Em um daqueles momentos seja você mesmo o empreendedor, acaso tivesse capital, eu ficaria contente de explorar apenas as madrugadas e fins de semanas, justamente nos horários onde os ônibus tradicionalmente minguam. Com a lei de tolerância zero tenho certeza de que clientes não iriam faltar.

Quer dizer, com a lei e com muito mais fiscalização. Ao sairmos do bar no fim de semana, eu e minhas amigas pudemos constatar vários motoristas embriagados, inclusive aqueles a quem elas pediram carona. Uma delas observou que deviam existir blitze permanentes. Ela está certa, mesmo que na prática falar de fiscalização ás quatro da manhã cause risadas ou o movimento repetitivo de ombros. São necessários mais policiais? Novos empregos no horizonte então. Precisamos de mais fiscais para fazer valer também a legislação ambiental, contratar nunca foi tão necessário.

Estamos em Agosto. O STF julgará a constitucionalidade da lei. Espero que a lei sobreviva a este mês e fique como está, rígida. Não que eu seja simpático ao despotismo brando ou a um estado policial, mas quero ver o quanto a sociedade vai mudar ou permanecer igual com ela em vigor. Agora com licença que vou fazer os cálculos de quanto eu preciso ganhar pra poder usufruir uma corrida de táxi mais de duas vezes por mês. Até a próxima e uma feliz Tolerância Zero para vocês!