Mais um fim de semana. Desta vez, o ônibus adia por uns quarenta minutos minha saída para a balada. Apesar da via expressa sul, ficamos parados uma meia hora por conta do Jogo do Avaí, um lembrança dos velhos tempos sem aterro, com a Costeira trancada por mais de uma hora. Sigo para uma tradicional área na vida noturna da ilha, para um dos mais típicos bares dançantes do lugar. Local a muito caracterizado como ponto de azaração, onde transcorrem as dinâmicas da vida de solteiro de tantos moradores de Florianópolis. Destaco: moradores, afinal ainda é inverno e há poucos turistas. Contrariando minha expectativa a entrada é barata, primeiro sinal do quanto eu mistificava o local. Não está muito cheio, ótimo pra dançar com desenvoltura e observar os freqüentadores. Logo á porta, um velho conhecido me pede cinco pilas pra completar uma cerveja (600ml= R$ 6,00. Não é a toa que não bebi nada a não ser uns goles oferecidos). No ambiente fechado eu poderia estar em qualquer lugar, mas dada a situação e os velhos relacionamentos sempre reaparecendo diante de você, á física da ervilha de Floripa manifesta-se. No canto do palco minha amigas, uma delas trouxe a colega de trabalho. Em uma dessas inesperadas ironias, o rosto dela e o biotipo me lembram uma antiga paquera Paulista. Acho encantador a timidez, o biquinho enquanto dança, a preocupação com o leve excesso de peso e o senso gregário, aquele impulso de estar sempre
Como é agradável poder dançar despreocupado em uma sexta despretensiosa, botar em dia os ossos e ver-se ainda capaz de seguir um ritmo. O som poderia ser melhor, menos alto, menos gritado, mas a percussão salva a noite. Mas o som é só cenário, o conteúdo humano é o que interessa. Por mais tranqüilo que esteja não deixo de reparar nas pessoas. A simpática moça da portaria, as duas meninas ao lado do nosso grupo, um trio de duas mulheres de preto e um homem de camisa branca. Uma delas de cabelos castanhos mais claros é a namorada dele. A outra é uma linda morena, uma saia blusa e meias pretas. A blusa é cavada atrás e deixa á vista o belo contraste das alças pretas da lingerie com as costas. Na penumbra demoro a notar nela a presença de uma charmosa barriguinha. Cabelo preto liso, franja reta, perfil levemente aquilino, a ossatura nasal destaca-se á distância como um ornamento de cobre velho. Penso por um momento no fato dela estar sobrando, por acompanhar um casal, mas há um silencioso incômodo em sua figura, um sutil hieróglifo moreno dizendo: hoje não.
Mas um rapaz, entre uns vinte oito trinta anos, cabelos pretos curtos e enrolados, óculos redondo, discretas entradas, chega junto dela e a tira pra dançar. Vejo á distância, por cima de ombros, como a interação começa sem jeito, a partir do zero, com dois completos desconhecidos. Ele infelizmente pega uma música para dançar á dois curta, seguida por outra mais rápida, mas segue colado á ela mesmo fora de ocasião. Já fui protagonista de cenas semelhantes em outros momentos. Conversas, mais uma ou outra dança ali e uma tentativa de beijo precipitada. Apesar disso, ambos ficam junto por mais um tempo, até que ele parte pra outra. Após mais ou menos uma hora e vinte minutos desde que reparei nela, a bela morena e o casal de amigos vai embora. Ela percebe que nada mais de interessante vai acontecer por ali, bota um grande casaco cinza, que deixa só as botas de fora e parte com o casal de amigos.
O rapaz de óculos acabaria por ficar gravado na minha lembrança, pois naquela noite ele deu em cima exatamente das mulheres nas quais eu reparei. Eu olhava uma moça e ao olhar de novo lá estava ele. Foi inevitável contar pelo menos umas três tentativas da parte dele. Todas frustradas. Quando o bar esvaziava ao final do show, ele ainda tentou uma aproximação com uma moça de calça jeans e cinto vermelho de crochê, cujos quadris pediam adornos brilhantes e convidavam á noites árabes. Ela também não foi convencida, naquela noite a lábia do rapaz não foi suficiente. O DJ selecionou uma última música, dizendo que para quem não tinha ainda beijado na boca chegara a última chance. Mas o salão já estava praticamente vazio, era fim de noite. Despedi-me das amigas, elas possivelmente engatilhavam alguma coisa ou ao menos uma carona com dois caras e segui para casa a pé.
Ao virar na rua onde tradicionalmente fica quem pede carona pro sul da ilha, eis que reconheço o rapaz de óculos, polegar ao largo. Ele articula aquele monossilábico e formal cumprimento entre dois desconhecidos, cujo única experiência em comum é ter estado no mesmo lugar, quando passo. Sinto vontade de cumprimentá-lo, elogiar o seu bom gosto para mulheres, mas sei o quanto seria impróprio. Ele não precisa de um cínico presunçoso em seu fim de noite. Ele também não está com uma cara muito bem humorada, como seria de esperar. Mas não deveria, pois ao menos ele tentou.
Eis a Fé. Como poderá o peregrino saciar sua sede em um mundo de igrejas vazias?
Sigo em paz para casa e durmo o que me resta da noite com gosto. No dia seguinte penso em como é bom estar livre da ansiedade da busca desesperada por um par. Guardada a advertência de Baden Powell, resta a estrada. E o mundo onde as catedrais acordam de vitrais baços, naves sem fiéis, altar sem velas.