quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Lei Seca e transporte coletivo

Na última sexta-feira sai para a noitada de ônibus. O bar de samba, última moda na noite de Florianópolis, já que o forró perdeu o pódio faz tempo, é longe de onde moro, mais de trinta quilômetros. Enquanto duas amigas esperavam no terminal do Rio Tavares, eu ficava em casa procrastinando a possível saída. Por fim me decidi e peguei o ônibus que saía do centro ás 23h05min, chegando ao meu bairro ás 23h33minmin. Procurei não pensar, como tantas vezes outrora, nos hipotéticos obstáculos que poderiam aparecer, frustrando a jornada. Cheguei ao centro ás dez para meia-noite, peguei um Agronômica, fui ao terminal da Trindade, chegando ás 00h17min e lá por fim, peguei o último ônibus para o bairro visado, ás 00h:25min. Tudo correu tão bem, dando a impressão de que o sistema de transporte coletivo estendia sucessivamente tapetes de boas vindas, a cada conexão que eu pegava.

Ao final da noite, apesar das tentativas de pegar carona, o ônibus novamente, no caso a linha Madrugadão Norte da Ilha, nos levou de volta para o terminal do centro da cidade, onde tomamos o Rio Tavares Paradoura e depois, no meu caso, Lagoa Rio Tavares ás 05h50 da manhã (chegou um minuto atrasado no Terminal Rio Tavares, nada demais).

Durante á noite, o assunto Lei Seca surgiu aqui e ali, em um comentário, em uma observação, abordado direta ou indiretamente. As meninas comentaram, influenciadas provavelmente pelo frio de nove graus Celsius, que a arquitetura dos terminais de ônibus de Florianópolis intensifica, no quanto seria bom ter um amigo com carro para poder voltar para casa tranquilamente. Eu concordei com elas em silêncio, achando graça de imaginar a possibilidade de uma indireta. Mesmo que fosse, pouco importava, pois éramos companheiros na mesma barca. Porém fiquei pensando nas grandes estruturas subjetivas da sociedade, abalroadas inadvertidamente pela Lei Seca, como o machismo ou o status social.

Chegar de carro na balada ainda causa, mas voltar nele não mais. Do homem de classe média é retirado seu veículo, símbolo por excelência de seu sucesso financeiro, social e por conseqüência galardão de sua masculinidade, e ele é obrigado a depender da perícia alheia ao volante. Ó revolta! Se ao menos ele possuísse dinheiro para um chofer ou para o táxi estaria tudo resolvido e a crista ainda levantada. Mas não. Até nisso a lei é cruel: relembra ao homem da existência de seus patrões. Daqueles que bebem de rios de dinheiro, inclusive daquele advindo dos impostos que ele paga. Pior, ao ver de súbito a blitz, o homem de classe média flagra em si um medo da polícia semelhante ao de um ladrão, lhe sobe á garganta a náusea de ser nivelado á periferia, local de onde, no seu imaginário, vêem os bandidos. E logo está ele ao bafômetro, os números sobem e ele em instantes de pesadelo vê-se igualado á grotesca figura do malfeitor, antecipa entre lágrimas o abraço acre e emocionado dos colegas de cela, percebe o quão curta é a distância entre o cidadão de bem e o fora da lei. O quanto esse tempo todo ele esteve próximo á sanção do braço forte do estado, enquanto uns poucos, por ele eleitos flutuam imunes ao suor do ganha-pão cotidiano e á miséria. Eis o feio da nova lei: ela iguala. E ninguém quer ser igual. Na prática, apesar da carta de direitos humanos, não existe o meu semelhante, existem os outros, que erram, cometem os crimes e não prosperam. Eu nunca serei um deles e qualquer lei que mesmo na contravenção transforme o outro em meu semelhante é uma aberração.


Não vou aqui questionar a rigidez dos limites de álcool no sangue previstos pela nova lei, álcool e direção não combinam, e pronto. A lei parte de um princípio lógico e razoável. Para algumas pessoas é possível beber dois chopes ou mais e continuar plenamente capaz de dirigir, mas e daí? Na mesma faixa onde transitam com segurança os acostumados a beber e dirigir há lugar para os imprudentes. Vale o risco? No meu entender a solução é simples e cristalina: deixe o carro em casa e vá de ônibus para a balada. Para essa idéia ser viável, mais linhas de transporte coletivo devem ser providenciadas, nos horários da madrugada e principalmente nos fins de semana, como já ocorreu em São Paulo. Tal iniciativa deveria vira um padrão nas outras cidades brasileiras, quebrando a lógica da necessidade de ter carro para sair á noite. Permitindo a livre circulação do lazer.

Por livre circulação do lazer entendo a liberdade do cidadão de ir e vir durante seu período de recreação e entretenimento. Para quem depende exclusivamente de transporte coletivo, tal falta de mobilidade é contornada com um programa que elege um só local para a balada e não está aberta a deslocamento durante a madrugada, devido á falta de meios de locomoção, como o episódio vivido por mim no último fim de semana. Naquela noite eu estive satisfeito com o sistema de transporte público, mas somente porque soube criar uma estratégia de sobrevivência ás condições que este me impõe. É só observar a tabela de horários do fim de semana para ver que o sistema de transporte público trabalha contra você. O número de horários diminui, o desconto do passe estudantil deixa de valer e a noite os coletivos viram uma rara visão. Tanto que ao contar para amigos que consegui curtir a sexta de ônibus recebi olhares admirados. Florianópolis pareceu lhes pareceu, por um momento, funcionar como uma metrópole cosmopolita, a utopia do cidadão urbano devidamente respeitado pela cidade onde mora tornada realidade. Ou simplesmente a súbita iluminação de constatar a existência de uma brecha para a vida boêmia nos horários de ônibus, até então ignorada.

Aqui em Florianópolis os contratos das empresas de ônibus venceram e as eleições se aproximam. Em frente ao terminal do centro, um movimento tenta conseguir assinaturas do povo para pedir uma nova licitação dos transportes. Motivos não faltam e a hora é propícia. Fico pensando como seria bom que as companhias de ônibus urbanos fossem como os candidatos, tivessem de convencer a população do bom serviço vão fazer se contratadas, ou que fazem e vão continuar fazendo se reeleitas. Melhor seria poder identificar os candidatos que possuem companhias de ônibus. Lançar luz no limbo onde habitam políticos e empresas de transporte coletivo. Aquele evento tão deixado ao deus dará pelo poder público, ás obscuras licitações. Porque não inovar e expandir os critérios de licitação? Em um daqueles momentos seja você mesmo o empreendedor, acaso tivesse capital, eu ficaria contente de explorar apenas as madrugadas e fins de semanas, justamente nos horários onde os ônibus tradicionalmente minguam. Com a lei de tolerância zero tenho certeza de que clientes não iriam faltar.

Quer dizer, com a lei e com muito mais fiscalização. Ao sairmos do bar no fim de semana, eu e minhas amigas pudemos constatar vários motoristas embriagados, inclusive aqueles a quem elas pediram carona. Uma delas observou que deviam existir blitze permanentes. Ela está certa, mesmo que na prática falar de fiscalização ás quatro da manhã cause risadas ou o movimento repetitivo de ombros. São necessários mais policiais? Novos empregos no horizonte então. Precisamos de mais fiscais para fazer valer também a legislação ambiental, contratar nunca foi tão necessário.

Estamos em Agosto. O STF julgará a constitucionalidade da lei. Espero que a lei sobreviva a este mês e fique como está, rígida. Não que eu seja simpático ao despotismo brando ou a um estado policial, mas quero ver o quanto a sociedade vai mudar ou permanecer igual com ela em vigor. Agora com licença que vou fazer os cálculos de quanto eu preciso ganhar pra poder usufruir uma corrida de táxi mais de duas vezes por mês. Até a próxima e uma feliz Tolerância Zero para vocês!

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