quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Abajo la Calle




A orquestra vira a esquina comigo, a cidade é um cinza de azuis violáceos refletidos no calçamento e o cais do porto ao final da rua ofega, entre uma baforada e outra. Cada círculo de fumaça é mais um partindo, embora o corpo fique para trás, olhando fixo o copo vazio, sonhando aguardente e calor barato em seda velha. Emborcando o chilreio de saltos e o suave estalo só deixado por lábios carregado de batom. A saca de estopa vai aos ombros, arranhões preliminares da amante, seu peso firma os pés e cada passo é um ensaio de dança, seu volume testado pelos dedos é a resistência da parceira e as pedras no piso são as linhas da pele de seus ombros. O calor do meio dia é o do corpo dela e o vapor subindo das pedras é seu perfume barato. E ele segue ao armazém com quem sobrevoa savanas desconhecidas em um balão. Os grãos o odor de um incêndio distante, irritam os olhos com a bruma de um ocaso, no horizonte um sol castanho emoldurado pela pausa quando o solo erodido freme, á espera do próximo movimento. Cílios da noite chegando estrelada no suor da fronte, gotas no dia a pino gemem evaporando nas pedras. E a noite se instala em volta das luzes amareladas, ao redor das ruas emaranhadas, na superfície dos sapatos de couro e de verniz, por fora dos ternos de feltro e dentro das rendas francesas, contorna os maços de cigarro, enrosca os de dinheiro, sopra através dos violões e sonha preguiçosa dentro dos acordeões. E em suas mesas, no salão, ao bilhar, no balcão, á beira da porta, nas calçadas entre corredores e becos, nos quartos abafados, estão eles, tantos olhos de um deus morto, roubados só para te conquistar.



Suas órbitas vazias ainda estarão lá, quando olhares o cais do longe do último barco, como uma brasa apagando o horizonte. Órbitas vazias, pés descalços, piso frio, a aurora entrará lenta entre olhos cegos e só assim finalmente poderei lhe ouvir. E só no vazio serás melodia...

4 comentários:

Nico Nicodemus disse...

Pô, Damião! Muito lindo. Inspirado e imagético. Cinema poético. Deslizas pela linguagem como cerveja derramada pelas frestas da mesa do botequim.

betatron disse...

Grato meu caro. Tento democratizar o cinema interior.

Elogios em prosa poética de qualidade salvam as pequenas salas do fechamento compulsório, qual o Bar-cine York.

Andrea Nestrea disse...

adorei a definição: solução para os dilemas básicos do universo!!"
ótimo.
vou flanar por aqui...

betatron disse...

Seja bem vinda!