domingo, 1 de fevereiro de 2009

Tentáculos


Uma paixão platônica abandona da cidade para nunca mais voltar. O que não foi dito calado está. O espaço organiza o tempo que organiza o coração. E estou novamente naquele quarto vazio, liberto de toda expectativa. Então vejo você. Estou sentado e as pernas não dançam. O quadril é um vaso de onde cresce a árvore negra de copa bulbosa e cinzenta, cujos frutos vítreos enxergam a si mesmos de dentro de seu olhar. Visto você, cerco-me do aroma de seu couro róseo e finalmente estou dentro, lá no fundo da tua capela. Sempre me perguntei como seria nadar em outra carne. O mundo lá fora é uma silhueta atrás de uma pesada cortina. Sinto seu movimento, teu centro de gravidade balançando, os delicados dedos de sua mão estalando. Minhas mãos afastam-se de meu rosto e param quando encaixam no espaço côncavo dos teus seios. Giro os punhos e estico os indicadores, para eriçar seus mamilos por dentro. Os dedos em pontas de luvas mornas sentem a tensão do vestido. Teu olhar desdenha de mim. Longe, atrás do espelho, você agarra no ar um molusco invisível. E a tinta escorre, por tua mão e antebraço escorrem arabescos de ébano, a gramática das profundezas queimando na pele. Fecho os olhos e a vejo enquanto água-viva em uma velha foto sépia. Então saio do poço.


Ao abrir os olhos sou ela tão longe, sorrindo em uma roda boêmia, franjas nos cantos das pálpebras. Ao bater as pestanas sou ela, Kohl carregado no olhar e a boca pequena franzindo e esticando de espanto. Ao abrir os olhos sou ela, braços finos envolvendo segurando firme a cintura do professor, sentindo na palma o suor na fina camisa dele, enquanto giram no salão. Sou seus pés descalços nos paralelepípedos quentes da cidade longínqua, ao voltar para casa. Sinto a bermuda jeans apertada e o peso da porta do banheiro público quando ela passa, um ano atrás. O peso da câmera em suas mãos. A esmagadora densidade de tantos sorrisos.


A filigrana negra em teu braço, o bolor escuro salpicado no pote de manteiga. Vilas oníricas, metrópoles esquecidas. Quando as vejo roçar as unhas pontudas na barba malfeita de tantos, pergunto-me se é isso que procuram. Uma casa vaga na cidade efêmera. Uma árvore sem dono no bosque obscuro.


Sento diante da inimiga invencível. Desfeitas as mentiras, resta afiar o espírito e esperar. O mais gentil e afetuoso aspecto delas virá um dia trazer a derradeira taça. E quando os tentáculos romperem minha casca, serei o fio da obsidiana. Quantos já estarão lá, fincados na carne da realidade? Quantos Merlins aprisionados em cristais adornam a deusa?


Rogo que ela tenha ossos. A epifania de lâmina é encontrar resistência.

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