terça-feira, 22 de setembro de 2009

Dia de ficar em casa

Dia chuvoso, nublado de Nós.
Murmura caos nas gotas,
Glaciares ósseos contra a carne.

Olhar acre, corpo erodido.
No teu hálito distante.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Noite quente de Domingo





Noites de final de semana
Sons de festas ao longe
Parecem vir da memória.

Esse lugar perene
Chamado evocação.

sábado, 19 de setembro de 2009

Reflexões de um dente podre

Aranhas em teias

Balançam de cá para lá,

Teriam na vida pendências?


V.R Gherardini, em seu primeiro Hai Kai.



Recentemente, minha última leitura de toalete (hábito revisitado após décadas de ausência), levei minha agenda de 2006, ou ao menos o volume que constituiu em uma tentativa de agenda de compromissos. Lá encontrei meu eu da época, demasiado amargo para meu gosto atual. Redescobri as anotações afetivas de uma antiga namorada e destas resgato este poema. A sutileza do poema reflete minhas considerações existenciais do último ano. Não tanto pelas tramas espalhadas ao longo da ladeira do triênio, mas pela última palavra, pendências. Sempre penso nelas quando entro em um avião. Terra dos Homens eliminou minha ansiedade de viajar de avião, mas não a mórbida conjectura do e se for a última viagem? É preciso estar leve. Cada ano vivido nos treina a eliminar o excesso de bagagem.


Meu ano novo chega em Setembro com um clima insólito. As estações também mudam nas cidades interiores e ocorrem trocas de carapaças oníricas. Ao olhos a casa da mente está limpa, mas de fininho surgem os fantasmas das relações passadas. E após o surrealismo inicial uma voz reverbera na escuridão infinita: porque agora? E na ausência de relacionamentos concretos com essas mulheres episódicas os espíritos inacabados ganham contorno: são fantasmas das virginianas passadas.


Contrariando uma inevitabilidade masculina de esquecer as datas, uma engrenagem sutil movimenta a roda d'água nas profundezas e apesar da consciência não guardar mais referências, os dias chegam e mecanismos estalam, e lançam seus espectros. Como se uma frequência de rádio morta deixasse um sinal oco na alma, que bruxuleia quando chove e relampeja fantasmagoria. No mercado, ajudando minha irmã nas compras olho para as massas de pastel prontas e zelosamente embaladas e me permito meio segundo de melancolia nostálgica na ponderação do impossível. Uma fugaz oferta de aniversário ao vácuo. Em seguida a mente prática assume de volta e instantes depois impera o nonsense da afetividade barroca. A hilaridade da noiva de Frankenstein criada na torre do ego, destinada a nos rejeitar, pois mesmo monstros possuem o bom senso de recusar participação em mitos tortos. E a boa vassoura de palha os leva embora...


Mente limpa, dente podre. No abismo minimalista da dentina um homúnculo extrai uma catedral da podridão e ergue um altar de cadáveres. No fundo da raiz perdida duendes decompostos guincham emaciados á luz do derradeiro fogo fátuo. O verdadeiro horror chega a ser absurdo. Tão bizarro quanto um cármico canal quinze anos depois. A auto imagem corporal custa a desfocar da miúda entidade sombria repousando na gengiva, em cujo murmúrio reside a promessa de toda dor... A cavidade barítono, brocas soprano e lixas contralto e vindo de detrás dos olhos, aquele tenor. E o boticão ausente, negado pelo progresso e a eugenia da estética percorre as ruas na mão das viúvas dos bucaneiros...


E a luz do consultório entra altaneira com a primavera e purga celeste a nociva fossa. E sobre as ruínas da civilização esquecida é erguida a cosmopolita cidade do escárnio, destinada a perdurar para além da ausência do hálito. Para o deleite dos existencialistas futuros.


Saúde!





P.S: Só pra constar, a autora do poema de abertura é de Capricórnio.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Lá no canto

A umidade abaixa,
Toda água se levanta.
Na narina,
Da barata
O aroma
De quitina,
Canta.


Folha seca,
Bíblia eterna,
Massa abstrata.

Teu corpo arrebata,
A carícia
Que o pé achata.

Teu corpo,
Tua pata,
Tanta.

Jazz no fundo,
Da lata.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Ela escreve


Ela senta diante da tela, as distrações assombram atrás dos ícones coloridos, informação, deleite estético, ferramentas para ser mais humana do que o dia a dia permite. A firmeza do lápis, suas linhas retas conduzindo a atenção, seus ângulos sextavados atravessando o tato, os dedos colossais de um polvo mental envolvendo a coluna do templo, o olho focado no vértice onde a tinta interior adentra a aridez da folha seca e meticulosamente se deposita em extratos geológicos de grafite. Toda essa dança já passou e a folha coberta de simbologia ritual agora será transcrita para sobreviver embaixo d'água, para habitar o oceano mercurial onde a linguagem humana cria uma nova eternidade, que paradoxalmente lhe parece mais tangível.


Ela olha a mesa, a escrivaninha, o feio móvel para o computador, o quarto converge a sua intenção, se movimenta atrás dela com sua solenidade de concha ancestral de molusco, coberta de cracas, mapa de uma vida. Não há papel algum, apenas a ideia do mesmo contra o fundo do olho a 60 Hertz por segundo, luz da dissecação. Ela olha os nós das mãos, o padrão gráfico que se irradia como ondas pelos finos dedos, as unhas holofotes de celofane vem e vão entre o espírito e a matéria. Ela está lá, e onde ela está? O princípio da relatividade, além de si. Do canto de seu olho, aos poucos vão chegando suas versões, como uma caravana emergindo da bruma, como improvisações da intérprete na garganta recém amaciada pela cachaça, notas ganham corpo.


Subitamente ela tem significado, ela passa a prestar, não prestando. Sua vida boêmia ganha o glamour de navalhas de sangue seco, cada gastrite é apenas um ronco do motor do caráter, os agudos de sua risada transformam os homens tímidos em borboletas de coleção e os ousados em dançantes bonecos de um piche mágico que não enreda. Ela não tem cáries, apenas sussurros nas trevas da promessa do açúcar gentil em mãos de afeto. Seu hálito de cigarro é o verniz raspado de velhas brochuras, a promessa de sabedoria que sobe da poeira de tumbas recém abertas. Seu corpo não envelhece, apenas descobre novos aposentos na mansão, novos bairros se revelam na cidade do mim.


Ela se vê vadia, pintura a óleo gotejante sem tela, respingando cor e malícia. Apenas momento, sem memória ou hesitação. De suas mãos de tinta um copo escorre para cima, tomando forma e uma vez consolidado, borbulha o próprio conteúdo, para brindar ao instante. Ela está livre da vida sem graça dentro daquele corpo roído pelas traças da lembrança, apodrecendo na sarjeta sob luz de poesia viva, decomposto pelos vermes do ideal. Saúde!


Mas eis que da múmia evapora a Rainha do Rádio, em toda sua leveza e compostura. Troca de turnos entre plenitudes, a sensatez de contralto ressalta a ribalta. Tudo é cenário e a putaria vira chanchada, pois tanta concupiscência estava ficando pesada. E ela precisa rir de si mesma, pra não chorar á beira dos próprios limites, abismos em cujo fundo não existem monstros, apenas linhas de ônibus. Ao menos agora a barriga dói da piada, úlceras cicatrizadas em pequeninos muxoxos. A manhã reflete na tela e nos lábios roxos. E ela sacode a idealização de cima do corpo.

E desvanece.