segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Noite no subsolo

Eu cheguei no bar com o Jota, naquele meu estilo elegante e lugar comum de vestir, com uma camisa gola pólo e uma calça jeans com aparência de nova. Ele estava como eu, mas seu eterno ar de sambista o tornava mais elegante, qualquer roupa caía bem com sua descontração. Naquela noite eu não estava distribuindo sarcasmo como de costume, mas entregue a uma ansiedade fria e previsível, por isso mesmo controlável.

Em uma mesa no largo corredor do subsolo estavam as amigas do meu camarada. Na verdade vizinhas de prédio. Bom, só Sônia era amiga dele mesmo, a outra era amiga desta. Quando nos viram houve aquela pausa de segundos quando somos sondados com equipamentos de inconcebível tecnologia. Depois, os cumprimentos educados. Sônia era uma moça de altura mediana de uns vinte e seis anos, cabelos castanhos sem franja escorridos até o ombro, um lado mais despenteado. Rosto comum, porém belo, com um sorriso levemente triste que fazia toda a diferença. Usava uma mini saia branca justa e um casaco curto também branco e aberto, deixando a mostra uma blusa apertada de um verde escuro cintilante. Um decote generoso, coxas grossas, belas curvas. Para os padrões do meu amigo ela era gordinha, mas em minha opinião ele sonhava acordado com algum país de virgens anoréxicas.

Gisele tinha ascendência oriental e curvas menos exuberantes, mas firmes e delicadas, que fluíam em conjunto sob o pano ao menor movimento. Usava um vestido roxo, estilo entre medieval e moderno, de mangas compridas e ombros levemente bufantes, mostrando uma parte das costas, expondo o pescoço e um par de hipnóticas saboneteiras de pantera. Seu cabelo longo também tinha mechas e reflexos roxos. Seus lábios carnudos ficavam mudando lentamente de formato, quando ela não estava fumando, como um caleidoscópio de brilho fosco. Infelizmente a maior parte das combinações que faziam com os olhos era de desdém.

Logo que nos sentamos ela ironizou com meus cabelos compridos e minha condição de estudante, fez questão de destacar que ela trabalhava, tinha um emprego em um escritório e se preocupava com coisas sérias e adultas. Eu mal tinha aberto a boca. Nem tomado um trago. Vieram as bebidas e ela forçou um interesse perguntando de que cidade eu vinha, filmes preferidos, livros e outros detalhes. Houve alguma conversa amena entre nós quatro, mas logo Sônia e Jota deram prosseguimento a algum assunto pendente entre eles. Continuei falando de mim para Gisele, consegui alguns sorrisos agradáveis, mas a situação no geral era terrível. Ela me olhava como se eu fosse um tedioso exemplar de uma raça de lesmas peludas, mais um medíocre improdutivo onerando a sociedade, com sua existência. Os mínimos movimentos de seu belo corpo agora eram os de um predador, indeciso entre sujar as garras na imundície ou livrar o mundo daquela aberração na sua frente. E ao mesmo tempo aquela calma por entre a fumaça do cigarro, aquela beleza envolvente como o som de um gongo atordoando os sentidos a cada piscadela. Ela era fantástica, mas isso ficava escondido debaixo da própria merda rancorosa com que ela tinha se coberto. Gisele tinha sido cercada no centro da cidade por uma torcida organizada e quebrada até o menor dos ossos, á luz do dia em horário de almoço. A rua ficou assistindo e ninguém fez nada, seguiu sua rotina enquanto ela permanecia no chão coberta de mijo e fezes. E eu era só mais um cara menor do que o sofrimento dela. Um esboço, um contra regra.

Uma hora nosso assunto morreu e ela ficou dando ostensivas olhadas para a amiga, com vontade de ir embora. Eu já havia reparado que Sônia fazia alguma confissão muito íntima para o Jota, tinha até chorado. Mas ele contou uma piadinha infame e conseguiu levá-la para a pista de dança. Era visível que nada ia rolar entre os dois, mas Jota mantinha a esperança. Os olhos de Sônia estavam em outros rapazes. Gisele viu que ia ter de esperar e tentou disfarçar no seu rosto, sem sucesso, aquela frustração de estar condenada a dividir seu tempo comigo. Sua educação fingida ficava cada vez mais insuportável. Perguntou-me sobre meus relacionamentos e após meu resumo soltou um suspiro irônico. Todo o sarcasmo que descarreguei no mundo estava voltando para mim naquela noite, querendo provar que deus existia e era uma mulher bela, amarga e vingativa. Não agüentava mais. Quando ela estava me ignorando ataquei:

- Porque você tem de ser tão insuportável? O que te aconteceu? Sua amiga perdeu um filho, foi traída pelo ex-marido que roubou tudo que ela tinha e ainda passou AIDS pra ela. Mas ela ainda sai pra balada e curte a vida. Ela teria muito mais razão em ser frustrada com o mundo, mas não é. Não é curioso isso?

- Você virou um livro de auto-ajuda garoto? Se quiser aplaudir vai lá. Ela vai gostar.

- Não, assim como eu ela não está aqui pra dar show, vivemos o presente.

- Fale por você. Ela vive de ilusão.

- Você é amarga.

Ela apagou o cigarro e sorriu, jogando os cabelos para o lado, saboneteiras ondulando como veludo. Inclinou-se devagar para meu lado enquanto falava.

- Não. Vou te contar a verdade, já que estamos aqui após todo esse tempo. Eu e ela somos um espelho. Sou a sombra do teu reflexo. Nós somos tudo que restou do teu lado feminino. Esse é presente. Seja bem vindo.

Sônia chegou da pista, pegando a bolsa e acenando pra amiga. Gisele se levantou e vestiu uma jaqueta jeans clara, ocultando toda a beleza de seu vestido. Jota lamentou a partida delas e ensaiou uma longa despedida. Sentado de pernas quebradas olhei para Gisele, engolindo a verdade. Não podia terminar assim.

- Meu lado feminino? Cadê a terceira de vocês?

Sua delicada mão acariciou meu ombro enquanto ela se inclinava para sussurrar no meu ouvido. Suas voz tinha suaves cliques:

- Então espertinho, essa aí é aquela que assombra as tuas punhetas. Tenta ser mais criativo tá bom? Curte a vida. Tchau.

Deu-me um beijo carinhoso e levantou-se. Pegou Sônia pelo braço e acenou pro meu amigo. Jota sorria, satisfeito e radiante. Cerveja na mão passou o copo, enquanto me cutucava com o cotovelo, repetindo e aí, e aí?

Eu estava mudo, havia sido derrotado. Senti o copo na mão, a cerveja gelada descendo, ouvi minha voz, mas dentro de mim já tinha levantado e ido embora. O bar virou um jogo de luzes coloridas dentro de uma esfera de vidro que encolhia, cercada de escuridão. Eu tinha olhado o abismo e ele me olhou de volta. E riu da minha cara.

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