A caminhada não cessa. Vou no rumo de desertos ignotos. Cruzo áridas planícies onde cacos de cerâmica indecisos ora massageiam ora cortam meus pés. Grandes formações de rochas esmaltadas enfeitam o deserto. Admiro as nuances na paleta de cores em cada estátua ancestral, os obeliscos esculpidos pelo vento, a água empoçada nas panelas ao chão. Em todo lugar miragens sorriem dançam ao flamenco que levanta seus véus. O deserto sorri, deixa-se admirar, mas não deita comigo quando anoitece. Recolho meu corpo sob o aroma de suas axilas suaves, sonho nele e ele sonha nações distantes. Sou apenas uma brisa vaga embalando seu sono.
Ao longe maciços avermelhados anunciam outro deserto. Brilham na luz dos trovões de chuva ácida. Paredões de carros compactados comidos pela ferrugem, gigantescos corais de metal. A campina de ferro velho, riachos de óleo, grotões de graxa, onde a vegetação rasteira de placas de circuito integrado bruxuleia.
A noite durmo embalado pelo zunido das máquinas defeituosas. A aurora traz o aroma das selvas de jeans. Acordo ao som das calças esvoaçando, presas entre fios de aço nas copas de espuma e molas dos bancos rotos. O bosque de jeans puído fala comigo a linguagem inefável do silêncio, a pressão das altitudes no fundo do ouvido, quando caio por um segundo.
Começam a nevar manuscritos, as placas queimam, perdem a taxonomia. Tomos gotejam, o chão fica coberto de gramática. Em um súbito sol de voz vejo subir o vapor de conceitos, eles preenchem o ar com seus poliedros. O deserto fala comigo. Seus sólidos me criticam como outrora, mas exibem lacunas. O deserto revela as fragilidades de sua ecologia enquanto boemia.
O deserto não sabe de mim, escaravelho.
Desconhece que em seu pó me espelho.
Não sei onde ele sonha, onde se trata.
Apenas tento ser o silvo em sua prata.
Ali onde um suado trapo de jeans farfalha.
Quero ser daquela navalha.
( )...
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